Empurrados para a fome.


Em Floresta, José Enilson, vendo o osso encontrar o vazio na barriga do boi, espera / Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

Em Floresta, José Enilson, vendo o osso encontrar o vazio na barriga do boi, espera

Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

Há mais de um ano, José Enilson, 45 anos, morador da Fazenda Papagaio, em Floresta (434 quilômetros do Recife), dois filhos e R$ 130 por mês, assiste a um terrível espetáculo: seu rebanho entristece, cai e morre. Perdeu seis cabeças de gado. Perdeu mais 40 bodes. Todos foram vítimas da sede e da fome. Depois de levar os animais para o meio da caatinga, para que eles possam encontrar na terra seca algo para enganar a barriga, ele volta para guardar o rebanho. Aponta um dos bichos: “Aquele boi ali tá tão magro que a barriga colou. O osso já encontrou o vazio”.

Não deveria ser assim. O agricultor se inscreveu há quatro meses no programa Vendas em Balcão, onde o governo federal, através da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), subsidia o excedente de milho vindo do Centro-Oeste (R$ 18,12 até 3 mil quilos; R$ 21,60 até 7 mil quilos; R$ 24 até 14 mil quilos de milho). Nunca recebeu nenhuma das sacas de milho prometidas. Como vários agricultores e pecuaristas entrevistados nesta série, recorre ao xique-xique e ao mandacaru (este com extração proibida pelo Ibama) para conseguir atenuar a situação-limite de seus animais. Há meses José não se dá ao luxo de pensar em adquirir qualquer produto além da comida para manter vivos os animais que custou a ter. Mas nem mesmo isso a seca permite que ele faça.

Ele e sua esposa, Maria Senhora Menezes de Sá, 44, compartilham o mesmo terreno com Maria Soneide, 45 (irmã de Senhorinha), e Josimar, 44. As casas localizadas a palmos de distância uma das outras guardam vidas específicas: enquanto José tem apenas no campo seu pequeno e hoje seco Eldorado, o casal mantém uma caminhonete com a qual realiza o transporte escolar das escolas públicas de Floresta. É assim, com um dinheiro conquistado fora do campo, que os dois conseguem comprar ração e manter algum conforto na casa. Possuem centenas de bodes, que não estão passando fome. A tranquilidade, no entanto, está ameaçada: há quatro meses Soneide e Josimar não recebem o dinheiro pelo transporte.

Os bens comprados – um amplificador foi o último deles, a casa simples conta também com geladeira, TV e equipamento de som – começam a pesar na economia mensal, também emagrecida pela falta da água. Outra ameaça é a constante falta de energia, que prejudica a todos da fazenda. “A gente puxa a água de um poço, com a bomba. Sem ela, os bichos ficam passando sede”, conta Soneide, que vai se apertar para pagar os cerca de R$ 1 mil que deve na praça.

Em Serra Talhada, João Alves Nogueira, 63, morador da zona rural, também está endividado: recorreu a um empréstimo de R$ 4 mil para manter seu rebanho, que deveria estar sendo alimentado com a ajuda do milho da Conab. João é outro inscrito há quatro meses no programa e outro a não receber as sacas. O dinheiro emprestado, que tem prazo para acabar assim que a ração for toda consumida, foi uma saída de emergência.

“Não havia outro jeito. A palma se acabou aqui na região”, comenta, referindo-se à planta que já atuou como salvadora de rebanhos e hoje, por conta da praga da cochonilha, que murcha a palma e impossibilita seu uso, é pouco vista no Sertão. João entrou assim no rol daqueles que contraíram empréstimos para manter um rebanho ameaçado não só pela falta de água e comida, mas também pela burocracia e ineficiência das ações prometidas.

ANIMAIS SOLTOS - No distrito de Albuquerque-NE (Sertânia), José, 55 anos, e Josefa Silva, 48, não se interessaram em recorrer a ajuda do governo federal. Conhecem as histórias de insucesso em relação ao milho. Preferiram soltar oito animais na rua, para que eles próprios procurassem sua água e comida. Seria algo impensável para a família (da qual fazem parte dois filhos, Andréa, 18, e José Alex, 17) há dez anos, tempo em que comemoravam a ampliação da casa própria depois que o lar ao lado, que pertencia ao pai de Josefa, foi comprado.

Hoje, é a própria seca que vem ajudando no orçamento familiar: José trabalha como gari (salário de R$ 207,50) e como vendedor de água. Leva, de porta em porta, tambores de 200 litros (R$ 5, o do poço; R$ 8, o da água da cacimba, de melhor qualidade). São postos em uma carroça levada pelo jumento que, por sua função nobre naquele espaço, não foi abandonado à própria sorte. Com os R$ 55 conseguidos no trabalho de diarista de Josefa, mais R$ 70 do Bolsa Família, eles torcem para a água, que chegava duas vezes por semana pelos canos da residência, voltar. Sem ela, não há plantação de milho, feijão e capim, usado para ração. Sem ela, vão ter que se acostumar a viver com metade do dinheiro que a família conseguia antes de a seca voltar.

Fonte - Fabiana Moraes


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